A vida na Calle Alicante

Antes de sair sozinho pela primeira vez naquele lugar desconhecido, fui alertado: “repare nos para-choques, todos são ralados ou amassados. Os espanhóis dirigem muito mal, estacionam em qualquer lugar, de qualquer jeito”. Também fui avisado de que eles, os locais, têm alma beligerante. Assim, precavido, parti rumo às descobertas.
Os veículos me atraíram como ímãs, parados às vezes num completo desleixo. Não se guarda distância de um para outro. Também costumam colar nas guias. Um deles subiu na calçada e encostou numa árvore. Na lataria, sinais de paradas semelhantes. De fato, os cantos dos para-choques dos carros, ao menos daqueles de classe média, parecem ter saído de fábrica com as marcas do trânsito tamanha a quantidade de riscos e batidas. “Devem custar pouco os carros por lá (ou devem ganhar muito bem os espanhóis)”, pensei – o que hoje não me parece verdade.
Carros mal-cuidados, porém, eram apenas uma das marcas do lugar. A vida lá, uma área de periferia (embora não com as conotações que se tem no Brasil), onde vivem espanhóis típicos, era mais ou menos assim: o movimento começa relativamente tarde, por volta das 10h. Abrem-se as lojas e lá estão eles, tomando reforçados cafés, geralmente com tortillas (um tipo de omelete).
Nas ruas, senhoras bem agasalhadas levam os sacos de lixo até as caçambas. Não há lixeiras individuais, como no Brasil. À noite, o caminhão passa recolhendo o conteúdo das grandes caçambas, amontoadas em duplas ou trios a cada meio quarteirão. Também não há garagem para os carros, que pernoitam ali mesmo, na rua, em frente aos apartamentos – o que acentua a aparência de descuido, já que o veículo enfrenta sol, chuva, orvalho, neve...

A vida para por volta das 14h. É o almoço seguido da sesta. Nessa hora, subir os degraus do prédio era quase uma tortura. O aroma do azeite espanhol que temperava as refeições apresentava-se como um perfume. Não sei bem a razão, mas o cheiro da comida me deixava sempre com a impressão de que o prato do dia era carne de porco – ou de carneiro, muito apreciada naqueles lados. Também comem muito peixe e frutos do mar, mas estes nunca pareciam se manifestar ao meu olfato.
A partir de então, tudo era silêncio. As lojas fechadas eram o símbolo máximo dessa instituição espanhola, o sagrado descanso pós-almoço. Claro que no centro da capital a vida fervilhava, mas nenhuma capital é o retrato acabado de um país. Andar pelas ruas praticamente desertas entre 14 e 17h prenunciava uma quase melancolia, acentuada pelo clima frio e às vezes o céu cinzento.
Até que o fim da tarde chegava e, com ele, o movimento de volta. Lá estavam os espanhóis novamente tomando café, comendo porras (isto mesmo!) e tortillas. Dali a pouco viriam as tapas e cervejas. Tão estranho como andar por uma cidade fantasma em plena tarde é ver pessoas trabalhando normalmente num escritório às nove da noite. Ah, as calçadas costumam ter sujeira, notadamente bitucas de cigarro e papéis, além de folhas do outono-inverno.

No quarteirão e meio que separava o apartamento da estação de metrô Juan de la Cierva, na linha do Metrosur (que circunda a região metropolitana de Madrid), havia minimercado, quitanda, farmácia, uma mercearia comandada por chineses e com preços um tanto altos, banca de jornais, entre outros pequenos comércios. Todos os dias passava por eles e me divertia observando o movimento e os preços.
No minimercado, chamava minha atenção o açougue (como eram diferentes as carnes!). Na farmácia, indicada pela típica cruz luminosa verde, conferia num letreiro a hora e a temperatura – que geralmente oscilava entre 5 e 8ºC. Nossa vizinha, a quitanda conferia à região um clima interiorano em plena periferia de uma das maiores cidades do mundo. Observava os vegetais e frutas brilhosos, mas o que me despertava a curiosidade mesmo eram as nomenclaturas dos produtos em espanhol. Sempre batia o olho no mesmo cartaz que anunciava o preço de “grelos”. Fui embora sem saber do que se tratava o sugestivo (para nós, brasileiros) nome.
Na banca, conferia os anúncios da loteria. O destaque naquele período era o chamado “El Gordo”, a grande bolada de Natal, que somava quase cinco bilhões de reais. Criada em 1763 pelo rei Carlos 3º, a loteria é uma tradição espanhola. O concurso de Natal (que acontece dias antes) foi instituído em 1812 e atrai a atenção do povo. O país para na frente da TV - em casa e nos bares - para acompanhar o sorteio. “Avisa lá no Brasil que, se eu ganhar, vou comprar a Espanha!”, costumava brincar.
Outra tradição local nessa época é a mensagem de Natal do rei. Transmitida pela TV, é o momento em que Juan Carlos 1º fala com seus súditos. A celebração do Natal é simples, sem troca de presentes. Ela ocorre no Dia de los Reyes, em 6 de janeiro, quando acontecem desfiles dos reis magos pelas cidades, com direito a camelo, carros alegóricos, personagens infantis e distribuição de balas para as crianças – que vibram gritando “Los Reyes! Los Reyes!”, o ponto alto da parada.
Em Madrid, o desfile inclui uma chegada apoteótica, quando o prefeito entrega simbolicamente a chave da capital para os três reis da tradição cristã. O evento é acompanhado por milhares de pessoas nas ruas e transmitido ao vivo pela TV. Eu, claro, estava lá.
E assim era a vida nos dias que passei no apartamento da Calle Alicante, 11-B, em Getafe, na periferia de Madrid.


PS: para quem não sabe, porras são como os churros brasileiros, mas sem recheio. Já grelo, pelo que pesquisei posteriormente na Internet, é a folha de nabo. 

Em tempo: "calle" é rua em espanhol. A Calle Alicante está na primeira foto desta postagem.

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